O tema volta à tona por uma questão que permanece pulsante no foro do debate político: a fumaça eleitoral que, desde outubro passado, teima em obscurecer nossa vista e alterar o nosso olfato. A fogueira não se dissipa. E, desta vez, apresenta-se com lenha renovada, que a deixa alta e soltando fagulhas por todos os lados. Características de tempos mutantes. Vale reconhecer que a sociedade política é mais participativa; hoje, o país continua dividido entre bolsonaristas, lulopetistas, o grupo nem-lá-nem-cá e os amorfos, sem cheiro nem cor. O cenário abre largo painel de leituras. Primeiro, a constatação. O Brasil ganhou, de uns tempos para cá, a faixa de país ativo na galeria da política. Trata-se de um fato visível aos olhos dos analistas: mais discussão sobre política nos ambientes de trabalho, nos meios de locomoção e até nas mesas de bares e restaurantes. Qual foi a causa? A campanha eleitoral mais disputada das últimas décadas, a polarização entre discursos e narrativas, as correntes de ódio e indignação, que se espraiam pelas regiões, saindo dos centros urbanos e chegando aos fundões rurais etc. Como motores propulsores dessa nova feição política, entram em cena os figurantes: no lado esquerdo do cabo de guerra, puxando uma corrente de partidários e aderentes, Luiz Inácio Lula da Silva, que ganhou o pleito, sendo ele a maior referência da dinâmica social do Brasil, magoado depois de mais de 500 dias preso, em Curitiba, cheio de raiva e disposto a fazer tudo o que for possível para “recuperar” o país. De outro, o extremista de direita, Jair Bolsonaro, capitão aposentado do Exército, que canaliza as energias de metade do eleitorado, e que volta ao Brasil, depois de férias táticas de 90 dias na Flórida, Estados Unidos. Pois bem, ambos já estão com um discurso eleitoral prontinho para ser exposto, em palanques, eventos comemorativos, inaugurações. Lula vai querer acelerar seus programas, alguns de feitio desenhado no passado, enquanto Jair, na condição de piloto do PL de Valdemar Costa Neto, salário alto, casa alugada, despesas pagas pelo fundo partidário, correrá o país. Em franca peregrinação para botar mais na lenha da fogueira eleitoral de 2024, quando serão eleitos 5.570 prefeitos e milhares de vereadores, base que servirá de lançamento do candidato presidencial de 2026. Moral da história: nem sai de uma eleição e o Brasil já entra noutra. Donde se faz a inferência: viver permanentemente sob o clima de eleição é um golpe no planejamento, avilta as contas públicas, desmoraliza programas sérios e tudo é feito para atender aos compromissos de protagonistas que pensam apenas no “poder pelo poder”. Outra inferência. O tema da reeleição carece novo debate. Parece conveniente voltar-se a discutir a proibição de reeleição, prorrogando-se o mandato presidencial para mais um ano, ou seja, com 5 anos. Desse modo, o custo Brasil da reeleição seria atenuado, dando alívio às contas públicas. Diz-se que o ato de votar, de dois em dois anos, faz bem à democracia. A hipótese seria bem aceita, caso tivéssemos uma modelagem política desenvolvida, sem as curvas eleitoreiras, feitas para destinar recursos às obras de fulanos, sicranos e beltranos. Em democracias consolidadas, a experiência de reeleição torna-se mais palatável. Ocorre que os políticos não pensam em sair de seu status, que lhes dá visibilidade e condições para orbitar na esfera partidária, elegendo-se ou se reelegendo. Difícil será acabar com a reeleição, temos de admitir. O fato positivo da paisagem que se vislumbra é a politização mais aguda que impregna parcelas ponderáveis do eleitorado. Costumo pinçar as lições de John Stuart Mill, um dos pensadores liberais mais influentes do século 19, que classificava os cidadãos em ativos e passivos, aduzindo que os governantes preferem os segundos, mas a democracia necessita dos primeiros. Já Norberto Bobbio em seu livro O Futuro da Democracia, expressa ideia de que os súditos são transformados num bando de ovelhas a pas­tar capim uma ao lado da outra. E acrescenta: “Ovelhas que não reclamam nem mesmo quando o capim é escasso.” Por estas bandas, apesar do capim farto, equinos, caprinos e bovinos rompem o cabresto e saem dos currais. E mais, não querem ser com­parados a animais irracionais e dóceis. Mas devemos nos alegrar porque o Brasil cidadão dá as caras. Movimentos e decisões nas esferas judiciária e parlamentar denotam que o País passa a aplicar parâmetros racionais no campo eleitoral. O ativismo da mais alta Corte Eleitoral, ao contrário do que muitos apregoam, não deve ser en­tendido como invasão despropositada na esfera política. No último pleito, numa comunidade cearense, viram-se faixas com os dizeres: “Esta família não vende voto.” O corpo político da Nação não se curou por completo de doenças crônicas, dentre elas, inchaços na máquina pública. Mas as gorduras, pouco a pouco, são extirpadas.  
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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