ONos últimos tempos, o Poder Legislativo tem agregado mais força, evitando ser arrastado pelo Poder Executivo e aprovando tudo que venha das entranhas do Palácio do Planalto. E, mais, mostra sua contrariedade ao que chama de invasão de competências, ao constatar “ação legislativa” do Poder Judiciário.

Essa disposição, que anima os corpos legislativos da Câmara e do Senado, tende a se corroborar nos próximos tempos, realinhando a tríade de Poderes arquitetada pelo barão de Montesquieu e sinalizando um novo ciclo de tensões atenuadas na seara institucional.

O poder Legislativo tem sido, entre nós, menos valorizado que o poder Executivo. As eleições legislativas despertam menor atenção e interesse que as eleições para o Executivo. Explicam-se as razões: os direitos sociais foram implantados, no Brasil, em períodos ditatoriais ou em época em que o Legislativo estava fechado. O Executivo é mais centralizador e seu poderio reflete a tradição ibérica, espelhada pela força do patrimonialismo.

O Estado é o todo-poderoso, o repressor, o cobrador de impostos, o empregador, o paternalista, a vaca leiteira que propicia a mamata. O nosso sistema político-partidário reflete a instabilidade institucional, com partidos que mais se assemelham a um ônibus, onde qualquer pessoa pode entrar e sair, a qualquer hora e em qualquer estação. São 30 siglas inscritas no Tribunal Superior Eleitoral, que detêm condições legais de funcionamento.

Ora, sabemos que não mais que cinco ou seis representam efetivamente as visões dos grupamentos sociais, o que está a indicar a existência de um sistema auxiliar, também conhecido como o time das siglas de aluguel, que ajudam a empurrar o caminhão dos grandes partidos, emprestando espaços de mídia política para uso dos parceiros. O que teríamos além de enclaves na direita, no centro, no centro-direita, no centro-esquerda e na esquerda propriamente dita? Partido, como lembra o constitucionalista Michel Temer, é parte, parcela da sociedade, com suas demandas e perspectivas. Não teríamos 30 repartições na paisagem temática nacional. A não ser na área futebolística, onde podemos contabilizar 100 milhões de técnicos.

Temos de reconhecer que o espaço da fulanização política continuará a ficar cheio de perfis feudais. Que tentam transformar as entidades em blocos repartidos entre fulanos, beltranos e sicranos. No seio dos próprios partidos, as referências ainda se dão em nome do grupo de fulano, da turma de beltrano ou sicrano, o PL de Valdemar Costa Filho e do Bolsonaro, o MDB de Jader Barbalho, o PSD de Gilberto Kassab, entre outros.

Temos de reconhecer que os ajuntamentos chamados de “baixo clero” ainda serão fortes, sob o fluxo de uma política centrada na disputa de cargos e espaços, no entendimento do mandato como domínio pessoal e na ideia de que partidos são abrigos entre legislaturas. Não há aqui intenção de execrar o conceito do “clero” que habita os fundões do plenário, até porque os detentores de voto têm iguais direitos e deveres. A observação deve-se ao fato de que essa legião é mais sensível a barganhas.

Não se pretende dizer, também, que os cardeais do “alto clero” são puros. Dinarte Mariz, estrela do Senado nos anos de chumbo, costumava dizer: “Todo homem tem seu preço e eu sei o preço de cada um”. O velho senador potiguar referia-se a um indefectível traço do caráter político: o jogo de recompensas para a manutenção do poder. O rebaixamento do nível parlamentar se reforça com a substituição do paradigma clássico da democracia representativa – a promoção da cidadania – pelo paradigma de uma democracia que se pode designar como funcional, formada para abrigar interesses de grupos especializados da sociedade pós-industrial.

Chamo atenção para esse fenômeno. Na última década, observamos um refluxo da teia personalista que carimba as siglas partidárias e consequente ascensão de polos ideológicos, principalmente, entre posições de esquerda e direita. Na última eleição presidencial, o embate entre Luiz Inácio e Jair Bolsonaro puxou para a arena do pleito posições da direita conservadora e da esquerda, como as temáticas do aborto, da liberação de armas, do meio ambiente, da privatização, da diversidade de gêneros, do marco temporal (tema do presente) para as terras indígenas, entre outras.

O fato é que o país assistiu e até participou de um debate de ideias. A tendência de elevação doutrinário/ideológica na seara eleitoral sinaliza a caminhada do país na trilha da racionalidade. A sempiterna promoção de qualidades de candidatos e seu contraponto, o bombardeio aos defeitos, devem continuar, ao lado de uma agenda temática que permitirá aferir pontos de vista dos contrários sobre os grandes eixos da contemporaneidade.

A conquista do poder, meta de partidos políticos, tornar-se-á mais acesa. A infidelidade partidária será controlada pelos dirigentes partidários, devendo, porém, ocorrer migração entre siglas por ocasião da janela que sempre se abre para a mudança de partidos. As campanhas eleitorais tendem a acender os pavios da democracia participativa, com a mobilização de correntes e certa efervescência eleitoral.

Continuaremos a ver candidatos com maiores recursos tendo melhores condições de bancar a liturgia do espetáculo político, mas as massas eleitorais mostram-se mais conscientes de seu poderio. O eleitorado carrega forte dose de imprevisibilidade. Surpresas estarão na agenda.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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