Os governantes, quando se referem ao posicionamento de seus governos, costumam usar o rótulo do “novo”, da “renovação”, dos “avanços”, para traduzir a era pós (pós-liberal, pós-marxista, pós-social-democrata, pós-qualquer coisa). Tentativa de dizer que respiram o espírito do tempo e fugir da mesmice. Nenhum governante quer receber o carimbo de “igual ao outro” ou repeteco do passado, cópia mal-ajambrada do mandato anterior Seria o caso do governo Lula III?

As administrações, de modo geral, não escapam ao cenário desenhado por Roger-Gérard Schwartzenberhg, em seu clássico Sociologia Política: o cenário da tecnodemocracia, a democracia das vastas organizações econômicas, do gerenciamento burocrático a cargo dos técnicos, e com a participação dos círculos de negócios e dos políticos. É uma engrenagem construída com as ferragens da democracia claudicante. 

O pano de fundo, pois, é o da crise crônica que fragiliza os sistemas democráticos. Os partidos políticos são impregnados pela pasteurização, que elimina as ideologias. As doutrinas fenecem e se encontram na encruzilhada: para onde ir? Ao encontro do socialismo clássico, desmontado pela queda do muro de Berlim em 1989? Ao encontro da social-democracia, também em crise? À procura de um neo-liberalismo, com o empuxo das correntes conservadoras? Por acaso, seria uma nova modelagem essa do liberalismo-libertário de Javier Milei, que promete usá-la se ganhar a presidência da Argentina neste domingo?

Oportuno lembrar que esse libertarismo tem algo a ver com o anarquismo e, ainda, com o individualismo político do século XVII. Os libertários mantêm os valores liberais clássicos, porém esticando ao máximo suas dimensões. Opõe-se, por exemplo, aos direitos sociais, sob o entendimento de que constituem uma forma de coação do Estado contra as pessoas, ameaçando a liberdade individual.

E as massas descrentes, o que fazer para reativar seus interesses? Como atraí-las para a mesa do debate democrático? O que oferecer para restituir-lhes a crença em seus representantes? Todas essas perguntas remetem para a necessidade de se procurar “novos” ingredientes, “nova” couraça para enfrentar as lutas nesta terceira década do século XXI. Na ausência de um “novo” que tenha credibilidade, o velho conceito de novo acaba dando as caras.

A prática do alquebrado modelo de gestão abrange arranjos nas bases partidárias com o objetivo de garantir aprovação da agenda do Executivo, reformas constitucionais, abertura do cofre para cooptar apoios, atender, enfim, aos pleitos dos correligionários. A política na era do “pós-qualquer coisa” geralmente coloca o interesse geral como guarda-chuva de interesses privados. O dinheiro é o imã motivacional.  A luta contra os cartórios é sempre ganha pelos políticos, que continuam a construir seu mundaréu de poderes. 

O “novo” anunciado pelos governantes é aquilo que Maurice Duverger chama de “simbiose interburocrática” da política e da economia ou, ainda, o que conhecemos como um caldo grosso ou uma geleia partidária. A banalização das ações das siglas adentra os palanques nessa era do “novo velho”. Como dissemos acima, o arrefecimento ideológico, o declínio das siglas e dos parlamentos, e os respiros da democracia atomizada do século XIX explicam o empenho dos mandatários para explicar suas gestões.    

Bolar programas mirabolantes, particularmente aqueles voltados para o “pobrismo”, tem sido a cartilha usada e abusada. Reformas? Ora, as que forem possíveis. Déficit fiscal zero? Besteira, como diz Lula. Gasto é investimento; o estouro da boiada, com o escancaramento do cofre, faz bem. É assim que o populismo volta ao palanque de governantes. É assim que as massas carentes fazem parte do jogo de poder. Quanto mais perdurem, melhor para os “pais dos pobres”. Portanto, as regiões mais necessitadas, como Nordeste e Norte, são espaços estratégicos para os mandatários construírem fortalezas e feudos.

Qual a receita para a redistribuição de riquezas? Acesso ao crédito, o uso do cofre. Resumo da ópera. Em 2024, o palco será frequentado por lobos famintos. Poucos cordeiros aparecerão.  As disputas serão balizadas pela visão do cientista social alemão Otto Kirchheimer, que descreve a devastação dos “catch-all parties” (“partidos do agarra tudo o que puderes”). Cada qual com seu bornal.
 
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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